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O texto apareceu, originalmente, no site ConJur
A Medida Provisória nº 881/2019 (MP 881), aprovada pelo Senado Federal em 21 de agosto de 2019, presta-se a, dentre outras coisas e em suas palavras, estabelecer “garantias de livre mercado”. Com esse propósito, são alterados dispositivos de diversas legislações, dentre as quais a Lei nº 10.406/2002 (Código Civil).
O artigo 50 do Código Civil, que trata da figura da desconsideração da personalidade jurídica, sofreu alterações e adições importantes, passando a viger com a seguinte redação:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; eIII - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
Na Exposição de Motivos da MP 881, tais modificações foram assim justificadas:
15. A mais prestigiada e segura conceituação dos requisitos de desconsideração da personalidade jurídica, conforme amplo estudo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e em alinhamento com pareceres da Receita Federal, é anotada em parágrafos no art. 50 do Código Civil, de maneira a garantir que aqueles empreendedores que não possuem condições muitas vezes de litigar até as instâncias superiores possam também estar protegidos contra decisões que não reflitam o mais consolidado entendimento.
A motivação referida está em sintonia com o pleito, que não é novo, por uma aplicação mais rigorosa da superação da limitação de responsabilidade própria à sociedade empresária. Isto, contudo, não torna desnecessária uma avaliação crítica a respeito da técnica de implementação desta agenda, que questione se os objetivos expostos acima foram instrumentalizados da melhor maneira, ou, pelo menos, de maneira satisfatória.
Nas linhas que seguem, procuro examinar, com lentes próprias do Direito Societário[1], a norma inserida, pela MP 881, no novel §5º do artigo 50 do Código Civil, segundo a qual não constitui desvio de finalidade, a potencialmente ensejar, portanto, a desconsideração da personalidade jurídica, “a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica” (grifo nosso).
Um primeiro ponto que merece críticas é a imprecisão técnica da redação[2].
Sob o perfil (ou aspecto) funcional, diz Asquini[3], a empresa deve ser compreendida como a atividade do empresário, força em movimento dirigida para um determinado escopo produtivo. Reduz-se, portanto, em uma série de operações, fatos materiais e atos jurídicos, que se sucedem no tempo, ligadas entre si por um fim comum. É, para utilizar a expressão do mestre Ascarelli, um fatto di durata, que implica um escopo protraído no tempo[4].
Por outro lado, o fim comum (Gemeinsamer Zweck) compreende simultaneamente o objeto (ou escopo-meio) e o objetivo ou finalidade (escopo-fim) da organização societária, que, como elemento constitutivo das sociedades, se torna, para Karsten Schmidt, o fim social supraindividual (überindividuellen Verbandszweck)[5].
O escopo-meio da sociedade empresária é a empresa[6] à qual se dedica a organização, enquanto o escopo-fim será sempre a distribuição dos resultados da atividade social entre os seus membros, em consonância com o artigo 981 do Código Civil.
Daí porque, do texto do §5º do artigo 50, resultam equívocos de duas ordens, distintas, mas relacionadas:
Ainda que superada a trapalhada conceitual, entendo que a construção do §5º, na forma como aprovada, pode causar sérios transtornos na prática.
Para melhor me explicar, é preciso retomar e aprofundar a discussão a respeito do fim social. Nas palavras de Erasmo Valladão e Marcelo von Adamek[7], o fim social é dotado de eficácia funcional (funktionelle Wirkung), (i) fixando as diretrizes da política social; e (ii) definindo os direitos e deveres dos sócios, delimitando, portanto, as esferas individual e coletiva.
Assim porque Wiedemann é categórico ao afirmar que a cláusula do objeto ou da finalidade (Zweckklausel) constitui a “estrela polar” do ordenamento societário, vez que os sócios coletivizam seus interesses nos exatos limites desta fixação. Diz ele que:
[...] representa o fim social um metro normativo para a conduta da administração e dos sócios restantes. Para a administração, ele serve como itinerário [ou guia] e como limite; quem dele abusa age contrariamente ao dever e se torna responsável pelos danos causados. Além disso, o fim social concretiza o desenvolvimento e o dever de lealdade dos sócios individualmente: uma [sua] violação torna ilícitas as deliberações sociais[8].
Ao fixar as diretrizes da política social, o fim social, notado em sua eficácia funcional, limita a atuação dos administradores e, inclusive, dos órgãos deliberativos da sociedade. Essa noção é expressamente acolhida pelo Direito Societário brasileiro, que, (i) no artigo 154 de nossa lei acionária (LSA), prescreve que o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem “para lograr os fins e no interesse da companhia [...]” (grifo nosso); e (ii) autoriza a anulação de deliberações que afrontem o fim social (artigos 48, parágrafo único, 166, II, e 1.010, §3º, do Código Civil, e 115, §4º, e 286, da LSA).
Se os sócios coletivizaram seus interesses nos exatos limites da fixação do fim social, incluindo-se, portanto, o objeto (escopo-meio ou atividade), não me parece razoável concluir que a expansão ou, em especial, a alteração da atividade, em todo e qualquer caso, será elemento insuficiente a, per se, configurar desvio de finalidade.
Cogite-se, por exemplo, da situação em que o sócio administrador de sociedade empresária por quotas de responsabilidade limitada pratique atos, à margem do conhecimento dos demais sócios, que importem na alteração da atividade econômica exercida pela organização societária, e que de tais atos resultem situações prejudiciais aos credores, que, ao não encontrarem amparo de seu crédito no patrimônio social, pretendem ver superada a limitação de responsabilidade própria daquele tipo societário.
Nessa e em outras situações análogas, não seria possível falar em desvio de finalidade, a autorizar a desconsideração da personalidade jurídica para atingir, no caso utilizado como exemplo, o patrimônio específico do administrador[9] [10]?
Entendo que o texto do novo §5º do artigo 50 do Código Civil, erigido sob a premissa de conferir maior segurança jurídica à atividade empresarial, na forma como construído e aliado à exigência de demonstração da existência de dolo na conduta praticada (§1º do mesmo artigo), servirá de apoio para que, na prática, se torne ainda mais cômodo para o empresário mal intencionado lesar credores, com especial prejuízo para os pequenos, que terão de enfrentar a (agora bem mais) tortuosa via judicial para reconhecimento da ilicitude e, quiçá no futuro distante, satisfazer o seu crédito.
Voltando ao questionamento inicial, sem pretender esgotar o assunto, entendo que, ao menos do ponto de vista do Direito Societário, a solução oferecida pelo legislador, afoita no escopo de azeitar o fluxo das relações negociais – objetivo inegavelmente importante –, não resiste a um teste de estresse mais rigoroso e pode, ainda que sem querer, institucionalmente premiar a desonestidade.
[1] Que é, diz Friedrich Kübler, “o Direito das associações de pessoas de caráter privado, criadas mediante negócio jurídico para a consecução de um determinado fim comum”. Cf. Derecho de Sociedades, 5ª ed., Madrid: Fundación Cultural del Notariado, 2001, p. 29.
[2] O leitor não deve se enganar: a análise do texto literal não tem uma finalidade meramente formal, como que afeita a um preciosismo que não produz consequências práticas. A esse propósito, veja-se a firme assertiva de Gustavo Saad Diniz: “Todavia, os atores continuam estanques e o ciclo continua viciado: o Poder Legislativo cumpre muito mal o seu papel e distorce até mesmo os textos legais bem elaborados (com raras exceções); o Poder Judiciário continua hermético na aplicação dos mesmos textos legais problemáticos e com interpretações que muitas vezes trazem ainda mais incerteza [...]”. Cf. Instrumentos de capitalização societária, São Paulo: LiberArs, 2014, p. 9.
Com Ascarelli e sua habitual magistralidade, note-se que “justamente para uma melhor apreciação dos fenômenos econômicos, é mister o mais rigoroso tecnicisimo e que os conceitos dogmáticos constituem, afinal, como que instrumentos de trabalho do jurista, sem os quais não pode este preencher a sua tarefa [...]”. Cf. Panorama do direito comercial, 2ª ed., Sorocaba: Editora Minelli, 2007, pp. 152-153.
[3] Cf. Profili dell’impresa, Rivista del Diritto Commerciale, v. 41, I, 1943. No Brasil, veja-se a excelente tradução de Comparato: Perfis da empresa, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 104, 1996.
[4] Cf. Saggi di Diritto Commerciale, Milano: Giuffrè, 1995, p. 29 e A atividade do empresário, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 132, 2003. A tradução é do professor Erasmo Valladão.
[5] Cf. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes; VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Affectio societatis: um conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 149/150, 2008, pp. 118 e ss.
[6] Como visto, a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens e serviços, nos termos adotados pelo artigo 966 do Código Civil.
[7] Op. cit., p. 119.
[8] Op. cit., p. 119.
[9] A permissão para atingir o patrimônio específico do administrador ou dos sócios beneficiados pelo abuso, direta ou indiretamente, veio com a nova redação do caput do artigo 50 do Código Civil. Acredito que, axiologicamente, a conclusão está em sintonia com a regra do artigo 1.016 do Código Civil e, de modo algum, contraria a disposição do artigo 158 da LSA, vez que tais atos não poderiam ser considerados “atos regulares de gestão”.
[10] Veja-se, a respeito, a opinião de Tavares Guerreiro: “Nessas condições, há sempre que considerar que é a finalidade dos atos que determina sua pertinência ao objeto da companhia, levando-se em conta, nessa constatação, a noção exposta de interesse social. Disso se conclui, em primeiro lugar, que não há abuso de poder, nem se verifica qualquer ato estranho ao objeto social, quando se obedece à obrigação negativa de “ne pas nuire aux interêts de la société ou des co-actionnaires” [...] Em segundo lugar, conclui-se, com Cerami, que a expressão “atos estranhos ao objeto social” significa aqueles atos ou negócios jurídicos que, em concreto, não se coordenam à atividade econômica da sociedade”. Cf. Sobre a interpretação do objeto social, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 1, 1967, p. 72.